A inglesa Lisa Day morreu depois de sofrer anos com a "diabulimia", quando diabéticos injetam deliberadamente pouca insulina com a intenção de perder peso
Lisa Day morreu aos 27 anos
Lisa Day passou a injetar menos insulina que o necessário para controlar seu diabetes tipo 1 para perder peso. Anos da prática, associados à falta de controle da alimentação, levaram a jovem à morte. Ao encontrar seu diário, a família descobriu que a jovem sofria diabulimia e hoje busca alertar as pessoas sobre o problema. (Reprodução/Arquivo pessoal)
Lisa Day foi diagnosticada com diabetes tipo 1 aos 14 anos de idade e para tratar a doença precisava de injeções diárias de insulina, além de cuidados específicos com a alimentação. Em 12 de setembro do ano passado, porém, ela morreu depois de sofrer anos com a “diabulimia”. O termo, que ainda não foi reconhecido pelo mundo médico, refere-se aos diabéticos que se injetam pouca insulina com a intenção de perder peso. Os efeitos do descompasso no uso da medicação podem ser devastadores: cegueira, problemas renais, perda de cabelo e o mais grave deles: morte precoce. As informações são da rede britânica BBC. A notícia foi divulgada recentemente.
Katie Edwards, irmã mais velha de Lisa descreve a caçula como uma pessoa divertida e com muitos amigos. “Amava a vida, mas dava para notar que algo no fundo parecia perturbá-la. Era como se tivesse uma sombra triste perseguindo-a”, contou à BBC.
Em setembro de 2001, pouco depois de ser diagnosticada, Lisa começou a escrever um diário. Katie explica que não se deu conta de quão mal as coisas estavam com a irmã até que ela e mãe encontraram o diário. “Não sei ao certo o que começou primeiro: a diabetes ou os problemas de alimentação. Mas sei que, antes de ser diabética, Lisa era completamente feliz. Comia o que queria e não tinha problema algum com comida. Quando a diagnosticaram, pediram que escrevesse um diário em que registrasse o que comia, bem como os níveis de açúcar em seu sangue”, disse Kate.
Katie conta que a irmã foi mudando com a diabetes. “Os diabéticos precisam controlar muito o que comem, e acho que Lisa acabou se preocupando demais. Ela chegou ao ponto de não comer nenhum molho, nem manteiga. Quando comia, era só a metade de uma batata assada ou peixe cozido. Ela perdeu um bocado de peso”.
Segundo a primogênita, a situação de Lisa chegou a tal ponto que seu corpo passou a rejeitar a comida. “Lembro-me de uma vez que mamãe lhe deu um sorvete e ela estava orgulhosa de tê-lo comido. Mas sentiu-se mal, porque o estômago rejeitou o sorvete, já que Lisa não vinha comendo o suficiente”, conta a irmã.
Katie se lembra de como Lisa foi mudando seus hábitos alimentares à medida que o tempo passava. “No princípio, ela era esperta – não comia muito -, mas se deu conta de que, se não tomasse insulina, perderia peso de qualquer jeito. E poderia comer as coisas que não deveria”.
Foi quando a irmã começou a fazer bolos e pratos indianos e passou a comer sem problemas, pois poderia emagrecer do mesmo jeito. “Com o tempo, ela se deu conta de que podia aumentar o açúcar em seu sangue, não tomar insulina, comer o que queria e perder peso de todo o jeito. Ela não estava se entupindo de sobremesas ou refrigerantes, mas quando se tratava de comer, comia literalmente o que queria”.
Neste ponto de 2002, a família de Lisa não tinha se dado conta de quão ruim a situação estava. “Os diabéticos estão a cargo de seus próprios cuidados. Eles sabem de quanta insulina precisam. Minha família e eu presumimos que ela sabia o que estava fazendo. Não havia nada que pudéssemos fazer. Ela tinha sua vida nas próprias mãos”, explica Kate.
No entanto, a “estratégia” de Lisa, que não sabia que tinha diabulimia teve efeitos colaterais terríveis, segundo Katie, como problemas estomacais e nos pés. Ela desenvolveu um problema estomacal e, quando comia, seu estômago não processava o alimento. Tinha doras terríveis e foi internada algumas vezes entre janeiro e abril do ano passado. Os médicos disseram que isso foi causado pelo uso incorreto da insulina, e isso a deprimiu”.
Nos anos seguintes, segundo a irmã, Lisa viveu uma rotina de internações. “Mesmo quando ela sorria, sabíamos que tinha algo acontecendo. Eu sabia que ela tinha que tomar insulina, mas não o quão dedicada ela precisava ser. E essa coisa de diabulimia, eu não sabia que outras pessoas também tinham. Isso só veio à tona depois que ela morreu. É muito triste triste: se Lisa tivesse recebido ajuda 10 anos atrás, ela poderia ainda estar conosco, porque teria se cuidado mais”, lamenta Kate.
Estima-se um terço das jovens mulheres diagnosticadas com diabetes tipo 1 sofra de distúrbios alimentares ou se incomode com seu próprio peso. Organizações como a britânica Diabéticos com Transtornos Alimentares (Dwed, na sigla em inglês) estão fazendo campanha para que a diabulimia seja reconhecida oficialmente como um transtorno alimentar e psicológico.
“Ninguém sabe o quanto esse problema é grave nem como diagnosticá-lo”, diz a professora Khalida Ismail, que lidera a maior clínica de diabetes e distúrbios mentais britânico, na Universidade King´s College.
Doreen, mãe de Lisa, ainda guarda o vestido pelo qual a filha tinha uma obsessão. “Lisa disse milhões de vezes que o vestido era uma meta para ela, o que é muito triste. Ela morria de vontade de voltar a vesti-lo”.
Após a morte da caçula, que completou um ano em setembro, Katie decidiu ceder trechos do diário à BBC para alertar a respeito desse distúrbio pouco conhecido. Confira abaixo o relato:
Problema de auto-estima
26 de dezembro de 2001: “Me sinto realmente gorda. Quero perder peso. Acho que estou pesando uns 57 quilos”.
1º de janeiro de 2002: “Tenho que me injetar (insulina) daqui a pouco. Vou ligar para o Sam à noite para que nos encontremos amanhã. Acabo de me forçar a vomitar duas vezes”.
13 de fevereiro de 2002: “Um dia sem uniforme na escola. Sinto-me tão GORDA. Todo mundo estava bem hoje, menos eu. Vomitei minha comida hoje. Preciso fazer rapidamente meu dever para a aula de artes”.
5 de março de 2002: “Estou muito contente e me sinto muito bem. Não como chocolate faz 4 dias e 6kg. Mike me enviou uma mensagem nesta noite e tudo está bem. Preciso aprender a não ficar vermelha (de vergonha). Estou pesando 55,8 kg. Acho que sou bulímica”.
Distúrbio
14 de março de 2002: “Estou me obrigando a vomitar, porque caso contrário me sinto culpada pelo que comi”.
15 de março de 2002: “Me sinto tão gorda. Me odeio. Amanhã começo a trabalhar em um petshop. Há uma discoteca no FC amanhã. Vou com Holly”.
18 de março de 2002: “Tive uma ‘hipo’ (hipoglicemia) terrível na hora do almoço. Estava sentada com Mike e sua namorada. Não acho que ele ache que eu estou em boa forma”.
(Pessoas com diabetes tipo 1 frequentemente sofrem com hipoglicemia. O problema ocorre quando o nível de glicose no sangue se reduz demais e é comum em pessoas com a doença pois, ao contrário das pessoas saudáveis, em que o corpo produz a quantidade correta no momento indicado para que os níveis de glicose não subam ou baixem demais, em pessoas com diabetes tipo 1, a insulina, a comida e a atividade física às vezes não estão bem balanceadas, e os níveis de glicose são afetados.)
30 de abril: “Fui dançar na escola hoje. E há tempo não provoco vômito! Vi Mike outra vez hoje. (Foi) Um dia muito chato”.
29 de maio de 2002: “Odeio ser diabética. Não posso comer quando quero porque não quero ganhar mais peso”.
15 de agosto de 2002: “Tenho feito exercícios para o abdômen e o bumbum, indo à academia todos os dias. Não posso fazer mais, ou vou morrer de esgotamento, mas de repente seria bom, porque estou tão gorda”.
“Melhor é queimar (as calorias do) meu jantar fazendo polichinelos. Por favor, me deixem morrer”.
12 de novembro de 2002: “Não fui à escola hoje. Estou escrevendo este diário há um ano”. “Durante o ano passado fiquei bulímica, mas estou melhorando”. “Perdi 9 quilos. Agora peso 47 kg”.
4 de dezembro de 2002: “Joe e Tom mandaram mensagens. Me disseram que estou em boa forma. BELEZA, minha perda de peso está dando resultados”.
A anotação abaixo foi uma das últimas que Lisa fez no diário.
23 de junho de 2004: “Sinto que vou conseguir usar meu vestido vermelho outra vez e perder de seis a nove quilos até setembro”.
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