Poderia um único episódio de infecção intestinal tornar uma pessoa propensa a desenvolver distúrbios cardiovasculares, obesidade, diabetes ou alergias alimentares e doença inflamatória intestinal?
Essa hipótese inquietante está sendo investigada com apoio da FAPESP no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). A coordenadora da pesquisa é Denise Morais da Fonseca, uma das sete vencedoras da 11ª edição do Para Mulheres na Ciência – prêmio oferecido anualmente pela L’Oréal Brasil em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC).
“Experimentos com camundongos sugerem que a infecção pode deixar como sequela uma espécie de cicatriz imunológica, ou seja, uma alteração permanente nas vias de comunicação entre o intestino e o sistema imune. Agora estamos investigando como isso se relaciona com o desenvolvimento de doenças metabólicas”, contou Fonseca.
A linha de pesquisa começou durante o pós-doutorado de Fonseca, quando realizou um estágio nos National Institutes of Health (NIH), nos Estados Unidos, com bolsa da FAPESP.
Na época, o grupo supervisionado por Yasmine Belkaid (NIH) infectou camundongos com a bactéria Yersinia pseudotuberculosis – que tanto em roedores como em humanos costuma causar um quadro de diarreia aguda e febre.
“Esse tipo de infecção gastrointestinal é comum e, na maioria dos casos, benigno e autolimitado. Por essa razão, as pessoas acometidas não costumam buscar um acompanhamento médico de longo prazo. Não se sabia se haveria alguma sequela para o organismo”, disse Fonseca.
Após acompanhar a recuperação dos camundongos por dois anos (o animal vive, em média, três anos), os pesquisadores concluíram que sim, pode haver consequências permanentes. Os dados foram descritos em artigo publicado na revista Cell. O trabalho rendeu comentários nas revistas Nature, Nature Reviews Immunology e Science, entre outras.
Duas semanas após serem infectados, todos os camundongos já haviam conseguido eliminar as bactérias de seu organismo. Porém, quase 80% dos roedores passaram por um processo de remodelamento do mesentério, a camada de tecido conjuntivo que prende as alças intestinais à parede interna da cavidade abdominal.
“No interior do mesentério, há uma série de estruturas do sistema imune, como linfonodos e vasos linfáticos, que funcionam como vias de tráfego para as células responsáveis por fazer a vigilância do intestino e identificar alterações teciduais. Essas estruturas ficam danificadas após a infecção e não voltam ao normal sem algum tipo de intervenção”, contou.
Segundo a pesquisadora, o dano aos vasos linfáticos que passam pelo mesentério induz aumento de permeabilidade, permitindo o escape tanto dos lipídeos oriundos da dieta como das células do sistema imune, que acabam não chegando ao local aonde deveriam.
Fonseca descobriu isso ao perceber que nos linfonodos dos camundongos estava faltando uma população específica de células dendríticas – um tipo de célula de defesa responsável por apresentar antígenos ao sistema imune para que sejam reconhecidos e, se for o caso, tenha início a ativação dos linfócitos (resposta imune adaptativa).
“Estava faltando apenas uma única população e, justamente, aquela que deveria migrar do intestino para os linfonodos para induzir uma resposta imune adaptativa. Procuramos por todo o corpo e as encontramos no tecido adiposo mesentérico, por onde passam os vasos linfáticos. Ou seja, elas estavam escapando dos vasos para o tecido”, contou.
Testes subsequentes mostraram que, em consequência desse “vazamento”, o sistema imunológico parecia perder a capacidade de distinguir entre antígenos benignos, como os oriundos de alimentos, e ameaças reais, como bactérias patogênicas. As reações inflamatórias no intestino se tornavam mais exacerbadas. Além disso, o tecido adiposo mesentérico dos animais passou a apresentar um quadro de inflamação crônica.
“Evidências da literatura científica relacionam inflamação crônica no tecido adiposo mesentérico ao desenvolvimento de diabetes, resistência à insulina e obesidade. E os camundongos, de fato, tornaram-se obesos e resistentes à insulina”, relatou Fonseca.
Na hipótese aventada pela pesquisadora, o remodelamento induzido pela infecção teria alterado a permeabilidade da parede intestinal, favorecendo o escape de bactérias da microbiota intestinal para o organismo. Essas bactérias, que dentro do intestino são benéficas, fora de seu habitat usual ajudariam a sustentar a inflamação no tecido adiposo mesentérico – mesmo após o término da infecção que deu origem ao remodelamento. Por sua vez, essa inflamação no tecido adiposo mesentérico seria a responsável por manter as alterações no mesentério. Seria, portanto, um processo retroalimentado.
No intuito de comprovar a teoria, os pesquisadores administraram a parte dos camundongos antibióticos capazes de eliminar toda a microbiota intestinal. Como esperado, esse grupo não desenvolveu a inflamação no tecido adiposo mesentérico após a infecção inicial com a Y. pseudotuberculosis.
“Essa abordagem não representa uma proposta terapêutica para humanos. Foi apenas uma prova de conceito”, explicou Fonseca.
Atualmente, o grupo investiga a hipótese de que o vazamento dos lipídeos oriundos da dieta para a cavidade peritoneal – em função do aumento de permeabilidade dos vasos linfáticos – seja um dos fatores principais por trás dos transtornos metabólicos observados nesses casos.
“Normalmente, esses lipídeos são transportados por esses vasos até a veia cava, onde entram na circulação, vão para o fígado e são metabolizados. Quando ocorre o vazamento para a cavidade peritoneal, a circulação, a distribuição e o metabolismo dessas moléculas acabam sendo totalmente alterados”, comentou.
Os resultados preliminares da pesquisa indicam que ocorre deposição de lipídeos em regiões não usuais, como pâncreas e fígado – algo semelhante ao observado em pacientes com Aids, que desenvolvem lipodistrofia e têm risco aumentado de doenças cardiovasculares.
Perspectivas
Em outra série de experimentos, um grupo de camundongos foi infectado com Toxoplasma gondii, o protozoário causador de toxoplasmose, e outro com bactérias do gênero Citrobacter, causadoras, por exemplo, de infecção intestinal.
No primeiro caso, foi observado o mesmo tipo de cicatriz imunológica induzida pela infecção por Y. pseudotuberculosis. Já no segundo grupo a infecção parece não ter deixado sequelas.
Também foi observada a ocorrência do remodelamento no mesentério em um outro modelo animal de colite – uma inflamação no intestino induzida por substâncias químicas irritantes.
“Aparentemente, não são todos os patógenos que induzem esse tipo de remodelamento. E também esse processo não ocorre em todos os indivíduos acometidos por infecção gastrointestinal. Ainda não entendemos quais são os fatores determinantes e é algo que pretendemos investigar”, disse Fonseca.
Além disso, o grupo também pretende encontrar biomarcadores que permitam detectar precocemente o surgimento da cicatriz imunológica. “Pode ser algum tipo de lipídeo sanguíneo, algum componente bacteriano ou mesmo um método de imagem que possibilite avaliar a integridade dos vasos linfáticos”, afirmou.
Segundo Fonseca, o diagnóstico e a intervenção precoce permitiriam evitar o agravamento do quadro e o surgimento das doenças metabólicas. Umas das possibilidades seria testar drogas capazes de bloquear a ação de mediadores do sistema imune relacionados ao dano nos vasos linfáticos, como a interleucina-1 (IL-1).
“Podemos testar, por exemplo, os anticorpos capazes de bloquear a citocina TNF-α [fator de necrose tumoral alfa] ou a IL-1. Eles já existem no mercado e são usados no tratamento de colite”, avaliou.
Premiação
Além de Fonseca, também foi escolhida para receber o prêmio Para Mulheres na Ciência a pesquisadora Claudia Kimie Suemoto, da Faculdade de Medicina da USP, cuja pesquisa busca compreender os fatores de risco de demência, como a doença de Alzheimer e a demência vascular.
As outras vencedoras são Ana Chies Santos e Adriana Neumann de Oliveira, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Gabriela Trevisan, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSC), Fernanda de Pinho Werneck, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), e Elisama Vieira Santos, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Cada uma receberá uma bolsa no valor de R$ 50 mil para dar seguimento às suas pesquisas. A cerimônia de premiação será no dia 20 de outubro, no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.
Karina Toledo | Agência FAPESP
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