Sim - (Elaine Cardoso de Matos Novais, Promotora de Justiça)
“Não há crime nesta situação e é cabível o exercício do direito de escolha da gestante de fetos anencéfalos”
Sim. A presente questão tem suscitado um interessante debate nos últimos dias, principalmente a partir das audiências públicas realizadas no Supremo Tribunal Federal em virtude da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental intentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (ADF n 54).
Os fetos anencéfalos são, segundo os ensinamentos científicos da área médica, aqueles que apresentam má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação. A anencefalia gera a inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central û responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade, restando tão-somente funções que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. A anencefalia é apresentada pela literatura médica como sendo incompatível com a vida extra-uterina, sendo que cerca de 65% dos fetos morrem ainda no período intra-uterino.
Em Natal, a Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde já ingressou com pedidos de alvará judicial postulando a interrupção da gravidez destas mães sem esperança, que, com base em diagnóstico médico preciso, escolhem não levar a termo sua gestação. Em vários casos, o pedido foi acolhido pelo Poder Judiciário. Apenas no caso mais recente, o Poder Judiciário local, através de um Juiz que substituía o titular, indeferiu o pedido de interrupção da gravidez e o MP apresentou recurso ao Tribunal de Justiça. Antes de julgado o recurso, infelizmente, esta gestante teve o bebê de parto normal aos oito meses de gravidez e a criança já nasceu morta, o que levanta a seguinte indagação: que direito foi preservado?
Entendemos que não há crime nesta situação e é cabível o exercício do direito de escolha da gestante de fetos anencéfalos, vez que o crime de aborto busca proteger a integridade física do feto com perspectiva de vida, e também da gestante. Considerando que o anencéfalo não possui perspectiva de vida extra-uterina, não pode ele ser sujeito passivo do crime de aborto. Resta, então, a proteção aos direitos da mulher grávida.
Mas, será que ela terá sua dignidade humana preservada se, ao dormir e ao levantar, tem consciência que carrega em seu ventre um feto, o qual não sabe quantos minutos ficará vivo ou mesmo se chegará a nascer? Que certamente ao invés de planejar a compra de roupinhas, brinquedos e detalhes de decoração para o quarto da criança, precisará ater-se à realidade de não poder sonhar com isto?
Temos convicção que esta gestante fica submetida a um intenso sofrimento psicológico e isto afeta sim sua saúde, pois, atualmente, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), o conceito de saúde envolve o completo bem estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Além do sofrimento psicológico, esta mulher está mais suscetível a problemas na gravidez e outras doenças, conforme atesta a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, dentre elas doença hipertensiva específica da gestação, dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos, puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contração do útero, maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto. Este pensamento também é acolhido pelo Conselho Federal de Medicina.
Veja-se, por fim, que a situação de anencéfalos não se confunde com fetos portadores de deficiências, pois estes têm uma perspectiva de vida extra-uterina, a qual terá suas peculiaridades, redundando na necessidade de inclusão e compreensão da diversidade, mas no caso dos anencéfalos a perspectiva de vida extra-uterina inexiste.
Não - (Pe. Edson Costa Galvão, Professor do Seminário São Pedro)
‘‘Melhor seria a equipe da saúde treinada para demonstrar a mãe o quanto sua criança precisa ser amada’’
Não! Para começo de conversa, poderíamos perguntar: quem é o anencéfalo? Literalmente, anencefalia significa ausência de encéfalo. Essa definição é falha, uma vez que o encéfalo compreende, além do cérebro, o cerebelo e o tronco cerebral. Os bebês anencéfalos, embora não tenham cérebro, ou boa parte dele, têm o tronco cerebral funcionando. O tronco cerebral é constituído principalmente pelo bulbo, que é um alongamento da medula espinhal. Controla importantes funções do nosso organismo, entre elas: a respiração, o ritmo dos batimentos cardíacos e certos reflexos (como a deglutição, o vômito, a tosse e o piscar dos olhos).
Comparemos a anencefalia com a calvície. Se podemos definir, a grosso modo, anencefalia como ‘‘ausência de cérebro’’, poderíamos definir calvície como ‘‘ausência de cabelos’’. Mas os homens calvos não tem realmente cabelos? Nem mesmo um fio de cabelo? Em geral, os calvos têm cabelos, mas em pouca quantidade.
Tentemos então redefinir a calvície. Ela não é mais a ‘‘ausência de cabelos’’, mas presença de poucos cabelos. Agora vem a pergunta chave: qual o número máximo de cabelos que alguém pode ter para ser enquadrado na categoria dos calvos? Cem fios? Duzentos fios? Mil fios? Qual o número que diferencia os calvos dos não-calvos? Nota-se que a resposta é impossível. Pode-se, porém, recorrer à genética, e dizer que calvo é aquele que apresenta o gene da calvície, mesmo que os cabelos ainda não tenham começado a cair.
Quanto à anencefalia, é impossível recorrer à genética para definir um anencéfalo. Não se reconhece um gene responsável pela anencefalia. Ao que tudo indica, ela é uma má-formação adquirida, e não congênita. Assim, como definir a anencefalia? Ausência total do cérebro, ou ausência de uma parte considerável do cérebro? Qual é a máxima parte do cérebro que pode estar presente em um bebê para que ele seja ainda considerado anencéfalo? Essa pergunta simplesmente não tem resposta. Alguns autores têm proposto o uso do termo ‘‘meroancefalia’’ para exprimir a ausência parcial do encéfalo.
Constitui simplismo dizer que antecipação da morte do bebê anencéfalo, por si só, traria um alivio para a mãe. Lamentavelmente, o que costuma ocorrer é que, após um exame medico, a mãe se vê literalmente coagida a abortar. Dizem-lhe que ela não tem um filho, mas um monstro; que a criatura que ela carrega é repugnante; que não faz sentido esperar o nascimento, pois a morte é iminente; que a indicação ‘‘médica’’ para o caso é a ‘‘interrupção da gravidez’’.
Com essa enxurrada de frases chocantes, o entendimento e a liberdade de gestante ficam seriamente comprometidos. Melhor seria se a equipe da saúde fosse treinada para demonstrar àquela mãe o quanto sua criança, por ser gravemente doente, precisa ser amada, e o quanto, a cada instante, é preciso transmitir do amor a ela, uma vez que a expectativa de vida é pequena. E é bem melhor ter o trauma de uma morte natural, dando uma digna sepultura para seu bebê, do que ter a consciência pesada por toda a vida por ter jogado uma vida humana ‘‘na lata do lixo’’. Podemos citar a conclusão do Comitê de Bioética do Governo Italiano, totalmente oposta à Resolução 1.752/2004 do CFM brasileiro: ‘‘o anencéfalo é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa e vida não limita os seus direitos e a sua dignidade. A supressão de um ser vivente não é justificável mesmo quando proposta para salvar outros seres de uma morte certa’’. Estamos diante de um típico argumento eugenista. Por uma questão de precisão vocabular, a CNTS, autora da ADPF 54 deveria então trocar a recém criada sigla ATP(‘‘antecipação terapêutica de parto’’) pela expessão correta: aborto eugênico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário